Obras

O VOLTAR
Schubert: Die Schöne Müllerin (A bela Moleira)

Schubert: Die Schöne Müllerin (A bela Moleira)

Os dois ciclos de canções de Schubert, Die Schöne Müllerin (A bela Moleira), de 1823, e Winterreise (Viagem de Inverno), de 1826, apresentam um peregrino como narrador e protagonista. As obras estão ligadas à tragédia na vida pessoal de Schubert: ele sabia que a sífilis o levaria em poucos anos.

O poeta Wilhelm Müller é o autor das letras de ambos os ciclos. Contemporâneo de Schubert, Müller teve uma vida igualmente curta.

Para o pianista e musicólogo inglês Graham Johnson, “existe indubitavelmente uma dimensão pessoal na escolha da poesia. Die Schöne Müllerin foi escrito no ano em que foi diagnosticada a sífilis de Schubert, uma doença que, no século XIX, era certamente fatal. Fatal a médio prazo, não imediatamente. Isto gerava muito sofrimento, muita angústia. Minha teoria é que o ciclo foi uma parte importante da terapia que, inconscientemente, Schubert deu a si mesmo e que lhe permitiu continuar compondo nos cinco anos seguintes, sem amargura e sem morbidez”. 

Nas canções de Schubert, o Wanderer (o peregrino) apresenta diferentes aspectos e tipos: pode ser um inocente em busca de aventura e experiência, alguém triste e inquieto, ou sem lar. Pode ainda ser uma pessoa desiludida e solitária, vivendo na periferia da sociedade.

Para Graham Johnson, o grande interesse de Schubert pelo Wanderer se deve ao fato de o compositor estar entre os primeiros românticos e de o peregrino ser o ícone do Romantismo. “Ao invés de ser racional e voltairiano, o indivíduo recusa as normas geralmente aceitas: estou sozinho, ninguém entende meu ponto de vista, minha luta, minha dor, meus sentimentos. O próprio Schubert tinha simpatia por esse indivíduo à margem”, afirma.

A musicóloga norte-americana Susan Youens, autora de livros sobre esses ciclos e sobre os poetas de Schubert, explica: “o Wanderer em Die Schöne Müllerin é, na verdade, um peregrino hipotético. Logo no início do ciclo, o protagonista decide se tornar um peregrino. Sendo um poeta/cantor, ele não ganhará suas credenciais poéticas se não peregrinar; só que, ao parar em um moinho, ele se apaixona loucamente pela filha do moleiro, e isto é o fim de sua peregrinação romântica”.

Em seus poemas, “Müller reescreve a tradição a partir de antigas tradições poéticas, particularmente de romances medievais e canções folclóricas”, afirma Youens. “Die Schöne Müllerin é uma versão moderna de um romance de cavalaria. O moleiro idealiza a mulher amada como uma espécie de virgem-santa e fica totalmente arrasado quando descobre que ela é atraída por alguém que considera um bruto, um primitivo. Nós só ouvimos as reações emocionais do moleiro. Ele venera sua amada à distância, mas se torna impaciente quando ela não lhe dá nenhuma atenção especial”, completa a musicóloga.

Ouça a seguir o ciclo completo, interpretado pelo barítono Dietrich Fischer-Dieskau e o pianista Christoph Eschenbach, e acompanhe a sequência das peças comentadas, abaixo:

Schubert – Die Schöne Müllerin (A bela moleira)

 

Das Wandern (Peregrinar)

O peregrino inicia sua jornada. O movimento rápido e constante é a essência da canção, e vai servir como referência de todo o ciclo. 

“Peregrinar é a alegria do moleiro;

Pobre o moleiro que nunca pensou em vagar…

Aprendemos isso com a água;

Ela nunca descansa, de dia ou de noite,

está sempre decidida a vagar…”

Schubert sugere a energia e determinação do personagem nos vocais – a letra introduz um refrão com as palavras-chave: das Wandern (peregrinar); das Wasser (a água); den Rädern (as rodas); die Steine (as pedras).

Elas se repetem quatro vezes, inclusive com um eco suave, quase encantatório. O moleiro, na verdade, roga um feitiço sobre si mesmo antes de se aventurar mundo afora.

 

Wohin? (Diga, riacho, para onde?) 

A canção nos apresenta outro protagonista do ciclo: das Bach (o riacho). Inconsútil, a canção flui incessantemente como o riacho.

 

Halt (Parada)

A canção tem o mesmo estilo corrente e a liberdade de forma que Wohin, com a qual compartilha outras afinidades musicais e psicológicas.

“Vejo um moinho cintilar entre as árvores;

o rugido de suas rodas interrompe o balbucio e o canto.

Oh, bem-vindo, doce canto do moinho!

E a casa, que aconchegante, como suas janelas brilham!

E o sol, que brilhante, reluz do céu!

Oh, pequeno riacho, querido riacho, o que isso quer dizer?”

 

Danksagung an den Bach (Agradecimento ao riacho)

Esta canção se liga a Wohin e a Der Müller und der Bach (O Moleiro e o Riacho) para formar uma trilogia que contém a chave do drama.

 

Am Feierabend (De tarde, após o trabalho)

O moleiro, empolgado pela bela moleira, canta: “Queria ter mil braços para girar todas as rodas do moinho!”.

 

Der Neugierige (O curioso)

“Riacho, diga-me se a moleira me ama – apenas uma palavrinha – sim ou não.”

 

Ungedulg (Impaciência)

A voz parece estar sempre um compasso adiante do piano. Esta ambiguidade rítmica só se resolve quando voz e piano unem forças na frase climática “Dein ist mein Herz” (Teu é o meu coração).

 

Morgengruss (Saudação matinal à bela moleira)

A canção tem o frescor da própria manhã.

 

Des Müllers Blumen (As flores do moleiro)

A estrutura harmônica simples e a bela forma da linha vocal fazem desta uma canção de sabor folclórico.

 

Tränenregen (Chuva de lágrimas)
O moleiro e a moleira estão sentados à beira do riacho, em noite de Lua. De repente, ela se levanta e diz: vai chover, vou-me embora. Schubert ignora em sua música o anti-clímax deliberado do final do poema.

 

Mein! (Minha)

Há três pontos no ciclo em que a música soa uma nota de alegria e de amor realizado e triunfante: Ungeduld (Impaciência), Mein! (Minha) e, depois, em um contexto muito diferente, Trockne Blumen

Mein! é um clímax, um ponto de inflexão do ciclo. Finalmente o rapaz aborda a moça e declara seu amor. Eles se tornam amantes. 

Porém, na canção, há a dúvida se a moleira realmente se entregou ao rapaz ou se ele está simplesmente imaginando coisas. Pode ser que ela de fato tenha dormido com ele e que isto o leva à loucura. Mas Schubert escreve a canção de maneira que o moleiro tenha um momento, ainda que fugaz, de felicidade e de amor verdadeiros. 

 

Pause (Pausa)

O papel dominante é aqui do piano, que imita o dedilhado do alaúde, e ao qual a voz faz um comentário introspectivo.

 

Mit dem Grünen Lautenbande (O alaúde de fita verde)

Tal como Des Müllers Blumen, a forma e a harmonia simples aproximam esta obra de uma pura canção folclórica.

 

Der Jäger (O caçador)

Existe, é obvio, uma nuvem no horizonte. A aparição do caçador interrompe rudemente o drama interior vivido pelo moleiro, servindo como uma lembrança brutal da realidade externa. A música muda – tem uma energia crua, frases quadradas e ritmos equestres.

Susan Youens comenta: “nos romances de cavalaria, há sempre um terceiro personagem que entra em cena para perturbar o romance, existe sempre uma ameaça. Neste caso, é o caçador, um personagem folclórico, de irresistível força. Quando ele entra em cena, o moleiro fica consumido de ciúme”.

 

Eifersucht und Stolz (Ciúme e orgulho)

Se, em Der Jäger, os eventos são olhados de fora, aqui, o moleiro dá vazão à sua raiva e seu ciúme.

 

Die Liebe Farbe (A cor amada)

Pela primeira vez, o desfecho, que está implícito desde o início do ciclo, é expresso abertamente. Diz o moleiro: “A presa que caço é a morte”. Os Fás sustenidos batem incessantemente ao longo da canção, como uma marcha fúnebre.

 

Die Böse Farbe (A cor pérfida)

O marcante contraste entre esta canção e a anterior se deve a Schubert, e não a Müller, já que os poemas são semelhantes, com seu tom de pessimismo e de autocomiseração. Schubert cria, assim, uma mudança de clima, sem a qual as cinco últimas canções do ciclo soariam a mesma nota de passividade e de páthos.

 

Trockne Blumen (Flores secas)

Com a chegada do caçador, o moleiro fica cada vez mais deprimido e melancólico. Em Trockne Blumen, uma das mais belas canções do ciclo, ele se imagina morto. Sua amada vai visitar o túmulo e o recorda com carinho. As flores secas, então, subitamente florescem. 

“Der Mai ist kommen, der Winter ist aus! (A Primavera chegou, o Inverno acabou!). Trockne Blumen é o verdadeiro clímax da obra. 

 

Der Müller und der Bach (O moleiro e o riacho)

Este é o último diálogo dos dois verdadeiros protagonistas do drama, antes do suicídio do moleiro. É a conclusão da trilogia iniciada em Wohin? e continuada em Danksagung an den Bach.

 

Des Baches Wiegenlied (Canção de ninar do riacho)

Este é um Nachgesang, um epílogo. Schubert termina o ciclo com uma canção de ninar. Trata-se de uma de suas mais belas berceuses: uma berceuse fúnebre.

 

Depois de se imaginar espionando a moleira e o caçador enquanto fazem amor, o protagonista não consegue mais suportar a situação e se afoga no riacho, que tinha até então lhe servido de confidente.

Para Susan Youens, “este é um poema de morte e ressurreição, em que o moleiro está, em certo sentido, nascendo para uma nova vida depois de seus sofrimentos na terra. Nas três linhas finais do poema, o riacho diz: ‘a lua cheia está nascendo, a neblina se dissipa e o céu lá em cima, como é vasto!’. A neblina, simbólica de tudo que escapa à nossa compreensão nesta vida, dá lugar a um nascer da lua monumentalmente concebido”.

“Schubert faz algo realmente maravilhoso”, afirma Youens. “Pode-se ouvir, durante a maior parte da canção, um sino que toca no acompanhamento do piano. O riacho promete ao moleiro que vai tratá-lo com carinho até o fim dos tempos. Schubert registra a solenidade deste voto, com as harmonias mais cheias e mais ricas de todo o ciclo”, conclui.

Assine nossa Newsletter

Inscreva-se aqui para receber alertas em seu email sempre que tivermos novos conteúdos por aqui.