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A Terceira Sinfonia – Eroica representa um divisor de águas, não somente na carreira de Beethoven, mas também na história da música. Poucas obras partilham com ela essa distinção, entre as quais, As Bodas de Fígaro, de Mozart, Tristão e Isolda, de Wagner, e o drama Erwartung (Expectativa), de Schoenberg.
A Eroica é a obra mais importante do início da segunda fase de Beethoven, ou segundo estilo, a chamada fase heróica, de 1803 a 1812, aproximadamente, e antecede outras duas grandes sinfonias do autor – a Quinta e a Nona – que acabaram tornando-se mais conhecidas.
Os primeiros esboços da Eroica foram feitos em Heiligenstadt, talvez antes mesmo do famoso Testamento, que Beethoven endereçou a seus irmãos, mas nunca enviou. Nele, o compositor fala sobre a descoberta de que sua surdez é um mal duradouro, de cura talvez impossível: “Fui levado ao desespero e faltou muito pouco para que eu pusesse fim à minha vida. Somente a arte me deteve”. Beethoven superou essa crise e começou a compor, em suas palavras, “de uma maneira inteiramente nova”.
O que faz a Terceira Sinfonia ser tão notável e tão revolucionária?
– o tamanho: com quase 50 minutos, a Eroica, tem o dobro da duração das sinfonias compostas até então;
– a sonoridade: a orquestra é praticamente a mesma de Haydn e Mozart – Beethoven só acrescentou uma terceira trompa –; o que é totalmente novo e desconcertante é o uso original e ousado dos recursos tradicionais;
– a estrutura: depois do primeiro movimento, de escala gigantesca, Beethoven faz uma escolha sem precedentes, escreve uma Marcha Fúnebre em forma de Rondó, em que o tema de abertura reaparece entre os diversos episódios; no lugar do Minueto, há um Scherzo, que, como veremos depois, é parte integral da trama da obra; o Final, de extrema originalidade, é também grandioso, em forma de variações, escrito com grande liberdade – um complexo trabalho de fugas, contraponto invertido e flutuações dramáticas de andamento que culminam em uma triunfante conclusão para essa verdadeira odisseia sinfônica.
Mas a Eroica é também revolucionária em outra dimensão. O musicólogo Alfred Einstein observou que as sinfonias de Haydn e Mozart sempre permaneceram dentro dos limites das normas socialmente aceitáveis. Beethoven, no entanto, segundo o biógrafo Maynard Solomon, levou a música para além do princípio do prazer do classicismo vienense: ele colocou a experiência trágica no núcleo de seu estilo heróico.
Uma característica única da Sinfonia nº 3 e de suas sucessoras heróicas é a incorporação, na forma musical, da morte, da destrutividade, da ansiedade e da agressão como terrores a serem transcendidos, no âmbito da própria obra de arte.
Beethoven tinha inicialmente dedicado a sinfonia a Napoleão, que ele considerava como a encarnação dos ideais democráticos da Revolução Francesa. Napoleão era, então, primeiro Cônsul, e Beethoven o julgava comparável aos melhores cônsules romanos. A Terceira Sinfonia seria, assim, a Apoteose do herói Napoleão. Beethoven inscreveu na folha de rosto da partitura: “Sinfonia grande intitolata Buonaparte del Signore Louis van Beethoven”.
Em maio de 1804, porém, Napoleão se fez proclamar imperador. Beethoven ficou furioso. Em uma cópia da partitura que chegou até nós, vemos que ele apagou o nome Bonaparte com tanta força que fez um buraco no papel. A inscrição na primeira página passou a ser então: “Sinfonia Eroica… per festeggiare il sovvenire di un grand’ Uomo” (Sinfonia Heróica… composta para celebrar a memória de um grande homem).
Quem seria esse grande homem, esse grande herói? Muitos estudiosos da vida e obra de Beethoven se dedicaram a essa pesquisa. Uma constatação importante que fizeram foi a de que Beethoven compôs primeiro o Final da Sinfonia. Ele usa nesse movimento um tema que tinha também usado na música do balé As Criaturas de Prometeu, Op. 43. O musicólogo Constantin Floros, em um trabalho da década de 1970, estudou a relação entre as duas obras.
No mito de Prometeu, que Beethoven musicou, a punição do protagonista, acorrentado à rocha, é omitida, porém seu castigo é mais severo: ele é condenado à morte e executado, sendo posteriormente trazido de volta à vida. Em seguida, vem a conclusão do balé: a Apoteose de Prometeu, celebrada por suas criaturas.
Em seu trabalho, Floros mostrou que as ligações entre o balé e a Sinfonia são mais substanciais do que se supunha. O pianista e musicólogo Wiliam Kinderman comenta:
“Floros traça vários paralelos entre o Allegro con brio inicial da Sinfonia e a oitava peça do balé – Dança Heróica. Mais importante ainda é a afinidade que ele encontra entre as duas peças seguintes do balé – a Cena Trágica e a Cena Jubilosa (nº 10, em que Prometeu, morto, é trazido de volta à vida) – e entre essas duas cenas e a progressão da Marcha Fúnebre para o Scherzo na Sinfonia. O simbolismo do balé ‘heróico-alegórico’, como foi descrito no programa da estreia, pode ajudar em uma análise mais convincente da Sinfonia.”
Sumarizando ao máximo, podemos dizer que essa análise leva à conclusão de que os elementos dramáticos e simbólicos do mito de As Criaturas de Prometeu correspondem à seqüência narrativa dos quatro movimentos da Terceira Sinfonia: luta, morte, renascimento e apoteose. Kinderman conclui, com grande propriedade:
“O paralelo entre a narrativa da Sinfonia e as fases de vida pelas quais Beethoven acabara de passar: seu desespero, a ideia de suicídio e a descoberta que fizera de um novo caminho para sua arte não são acidentais. Mas o simbolismo heróico da Eroica está tão profundamente incorporado à obra de arte que não pode ser analisado adequadamente em termos da biografia de Beethoven, ou em relação a qualquer figura mitológica ou histórica – Prometeu ou Napoleão. O que Beethoven explora na Eroica são aspectos universais do heroísmo, centrados na ideia de um confronto com a adversidade que leva finalmente a uma renovação de possibilidades criativas.”
Beethoven – Sinfonia nº 3 em Mi Bemol Maior, Op. 55 – Eroica | Filarmônica de Viena | Leonard Bernstein (regente)