
O Wanderer, o peregrino
Ao lado do desejo de ser outra pessoa está o de estar em outra parte. Muitas são as canções de estrada, de viagens ao exterior ou sobre o vasto mundo escritas por Schumann.
Há, porém, um clima de desconfiança em suas canções de viagem. Sua visão é sempre a de um idealista sonhador e solitário em busca de novos mundos do espírito e da irmandade universal.
Tudo isto afinal desemboca em um grande tema que unifica todos os demais. Não é óbvio; não poderia, na natureza das coisas, ser assim. Esconde-se no coração de toda a música de Schumann. É a característica comum ao amor, ao disfarce, ao “em outra parte”, ao passado longínquo, ao muito distante, à Natureza, à morte. É o tema do mistério.
Na canção Freisinn (Espírito Livre), o poema de Goethe evoca a liberdade guiada pelas estrelas e pela imensidão do cosmos:
“Deixe-me dominar a sela!
Fiquem em suas cabanas e tendas!
E eu cavalgarei feliz para longe,
Acima do meu chapéu apenas as estrelas.
Ele colocou as constelações
Para guiá-lo por terra e mar,
Para que você possa se deleitar nelas,
Enquanto olha para sempre no alto.”
Schumann – Freisinn | Dietrich Discher-Dieskau (barítono) e Christoph Eschenbach (piano)
Schumann compôs a partir de traduções de poetas do mundo inteiro: ingleses, escoceses, irlandeses, dinamarqueses, franceses, espanhóis, portugueses, gregos. Sobre versos do poeta escocês Robert Burns, ele escreveu Hochländers Abschied (Despedida do Habitante das Terras-Altas):
“Adeus, minhas terras altas, minha terra natal!
O berço da liberdade e da coragem está lá.
Onde quer que eu vá, onde quer que eu esteja:
Para as montanhas, para as montanhas eu sou atraído.”
Schumann – Hochländers Abschied | Christian Gerhaher (barítono) e Gerold Huber (piano)
Das Canções de Amor Espanholas, Der Flutenreicher Ebro (O Caudaloso Ebro) é uma obra-prima tardia de Schumann: “Caudaloso Ebro, pergunta à minha amada se, em sua felicidade, ela pensa em mim”.
Schumann – Der Flutenreicher Ebro | Olaf Bär (barítono) e Helmut Deutsch (piano)
A viagem no tempo
À medida em que foi ficando mais velho, a visão de Schumann se reorientou, dos horizontes do espaço para os horizontes do tempo:
– a Antiguidade Clássica;
– a Idade de Ouro da lenda ou da balada;
– a História mais recente (Canções de Maria Stuart);
– a infância – este, um de seus temas favoritos –, em seu Álbum de Canções para os Jovens.
O ciúme é o tema da balada Die Feindlichen Brüder (Rixa entre Irmãos). Os irmãos se batem e se matam em duelo pelo amor da bela Dama Laura. Tanto o poema de Heine como a música de Schumann buscam criar um clima longínquo tanto temporal como espacialmente.
Schumann – Die feindlichen Brüder | Dietrich Fischer-Dieskau (barítono) e Christoph Eschenbach (piano)
A loucura, o suicídio e a morte
Para Schumann, foi como se sua necessidade de encontrar uma outra personalidade o tivesse, ao longo dos anos, levado à perda de sua própria; como se seu anseio por um outro mundo tivesse resultado na negação deste. Sua mente se volta para poemas sobre a loucura e finalmente sobre a morte.
Uma canção tardia, Herzeleid (Dor no Coração), é sobre o suicídio e a morte por afogamento: “As ondas sussurram, docemente, uma advertência: ‘Ofélia, Ofélia!’”
Schumann – Herzeleid | Christine Schäfer (soprano) e Graham Johnson (piano)
É com estranho fascínio que observamos, ao longo dos anos, a recorrência desses temas secretos de submersão e enterro. Nos poemas que escolhe, um navio afunda, um caixão afunda. Um tesouro está enterrado nas entranhas da Terra ou no leito de um rio.
O Reno exerce uma estranha atração sobre ele, muito antes de seu desesperado salto da ponte de Düsseldorf. O rio é belo e traiçoeiro. Lá, sob as ondas, habita a sedutora Loreley.
As ondas sussurram e murmuram
Sobre sua casa silenciosa.
Uma voz ressoa: “Lembre-se de mim!
Quando a lua estiver cheia e a noite silenciosa.
Lembre-se de mim!”
E as ondas sussurrantes fluem
Sobre sua casa silenciosa.
“Lembre-se de mim!”
Schumann – Loreley | Dietrich Fischer-Dieskau (barítono) e Christoph Eschenbach (piano)
Em Berg und Burgen (Montanhas e castelos), o rio é belo e traiçoeiro. Mas baixo do calmo espelho da superfície, escondem-se a noite e a morte:
Montanhas e castelos contemplam
O Reno brilhante como um espelho (…)
Com saudações e promessas amigáveis,
O esplendor do rio acena;
Mas eu o conheço — brilhando acima
Ele esconde em si a Morte e a Noite.
Schumann – Berg und Burgen | Peter Schreier (tenor) e Christoph Eschenbach (piano)